quarta-feira, 10 de novembro de 2010

HÁ UMA DEPENDÊNCIA MENTAL

Tribuna do Norte - Publicação: 24 de Outubro de 2010 às 00:00

Após 36 anos no Brasil, onde desenvolveu principalmente o trabalho voltado para o cooperativismo, o suíço Jean Raboud voltará ao país de origem. Quando chegou em 1974, desembarcou em um navio em São Paulo. Trazia como objetivo o projeto de estudar a engorda de animais. Essa semana, quando embarcar de avião levará milhares de histórias, a forte lembrança das ações sociais desenvolvidas no Rio Grande do Norte e, principalmente, o testemunho da esperança do povo brasileiro, como o próprio Raboud costuma dizer. A vinda ao Estado potiguar ocorreu para atuar em um projeto de essências; poucos anos depois já estava envolvido na sua grande paixão, os serviços focados na cidadania. Mas para Jean Raboud o trabalho no social precisa, antes de tudo, desfazer o grande muro que há entre a sociedade civil e os órgãos públicos. Para o suíço é preciso uma união completa, sem divisões. “Sempre fui um adversário dessa divisão da sociedade, com sociedade civil de um lado e poder público do outro”, analisa Jean Raboud. O que é mais difícil quando se trabalha com cidadania no Brasil? “Acho que a dependência das pessoas em relação a política e aos políticos. Há uma dependência mental”, responde de pronto, em uma clara referência ao não pensar das pessoas, e associar a opinião apenas ao que já trazem pronto os políticos. E quem trabalhou com tanta doação ao projeto da cooperativa de caju em Serra do Mel observa: os bairros de Natal podem desenvolver projetos semelhante ao daquela cidade. “O que é notável é que no país é que se aprende muito não por um sistema de aprendizagem, mas pelo fato de fazer, fracassar e retomar com esperança”. Jean Raboud incentiva as pessoas a terem responsabilidade, que origina a dignidade. “A dignidade vem da responsabilidade, não do fato de você levar coisas porque são pobres. Você precisa mostrar como fazer e como dar”, destaca.
Rodrigo Sena O suíço Jean Raboud voltará ao país de origem

O convidado de hoje do 3 por 4 é um suíço com todo espírito brasileiro, um brasileiro por si só encantado, um cidadão do mundo, com coração brasileiro e lições de um nobre ser humano. Com vocês, Jean Raboud.

Depois de 36 anos no Brasil, qual o sentimento do senhor ao deixar o
país?
É um sentimento de um pouco de tristeza e por outro lado de que era
quase necessário colocar uma certa distância entre o que a gente tinha
realizado e as nossas pessoas. Porque tem um autor francês que diz que
para que um projeto de uma pessoa tenha sucesso e durabilidade essa
pessoa tem que se afastar do projeto e viver (o projeto) por conta
própria. Foi o que fizemos até agora com o projeto do Passo da Pátria
(bairro onde ele desenvolve um trabalho voltado para cidadania). Depois
da Serra do Mel eu trabalhei quatro anos na Europa, fui responsável pela
cooperação Suíça na Bósnia-Herzegóvina e voltei no início do ano de
2003 para colaborar com uma turma da Igreja de São Pedro na Associação
para o Desenvolvimento de Iniciativas de Cidadania no Rio Grande do
Norte (ADIC).
O senhor teme que a Associação de Apoio as Comunidades de Campo (AACC), a
qual o senhor integrou, possa ter uma baixa após a sua ausência no Estado?

Não. Eu deixei a AACC em 1998, continuei me interessando nas atividades
da AACC e Coopercaju (Serra do Mel), que beneficia o caju de maneira
caseira, mas com padrões internacionais, ela exporta uma mercadoria com
todos os registros necessários. Estou acompanhando, mas deixei de ser
ativo na AACC e na Serra do Mel em 1998 quando fui assumir minha função
na Bósnia.
A população está madura o suficiente para empreender o cooperativismo?

Diria que está no caminho. Falta muito, mas faltou muito mais. Já houve
também a multiplicação de experiências que deram certo, muitas não deram
certo, mas foi aprendizado. O que é notável é que no país se aprende
muito não por um sistema de aprendizagem, mas pelo fato de fazer,
fracassar e retomar com esperança. O que me impressionou demais no
Brasil foi a força da esperança. Conheci Serra do Mel no auge da seca, o
pessoal com fome, mortalidade infantil muito grande, apesar de tudo
isso as pessoas ainda esperavam a ajuda do governo que vinha de maneira
insuficiente e esperavam encontrar alguma forma de ter uma vida melhor.
Tentei mostrar que a fórmula já estava com eles, era deles. Apesar de
todo castigo, de toda pobreza, a partir deles que tinha que surgir a
solução. Estudamos a solução tentando compor todas as forças que tinham
lá, Governo, sociedade de lá, sistemas de apoio da Suíça e Alemanha.

Qual a visão que o senhor tem do gestor público frente ao
cooperativismo?
Talvez não ele (o gestor público) não tenha uma visão suficiente de
oportunidade de preparar quem vai gerir e assumir a responsabilidade de
cooperativas. O Governo por si não é ele o primeiro interessado nisso. É
interessado, claro, porque dá visibilidade a muitas regiões que sem a
união dos produtores não teriam um impacto na economia do Estado. Nisso
ele precisa ser mais ativo. Mas a minha visão é que eu sempre fui um
adversário dessa divisão da sociedade, com sociedade civil de um lado e
poder público do outro. Não há essa diferença entre sociedade civil e
poder público. O poder público deveria ser a união da sociedade civil.
Deve ter um engrenagem, uma profunda colaboração entre os dois e
sobretudo o que estamos fazendo no Passo da Pátria é fazer surgir o
sentimento de responsabilidade no próprio pessoal. A dignidade vem da
responsabilidade, não do fato de você levar coisas porque são pobres.
Você precisa mostrar como fazer e como dar.
Como o senhor decidiu criar a ADIC?

Tinha o trabalho da Pastoral, mas sentimos que tinha que dar um alcance
maior, sair do esquema de Igreja e ser mais abrangente. Foi aí que fiz a
constituição dessa ONG, em 2005, mas começamos a trabalhar com a igreja
de São Pedro no final de 2003. Em 2005 formalizamos a criação da ADIC.
Estamos assumindo no Passo da Pátria uma construção que vai chegar a R$
600 mil. E precisamos da ajuda de todos (3211 -5471).
Como será o contato do senhor com os projetos sociais quando estiver na
Suíça?
Eu nunca estive praticamente a frente da ADIC porque para continuar a
coisa quem contribui, dá o ponta pé inicial, tem que se afastar,
sobretudo quando se tem mais de 70 anos. Eu participei muito das
atividades e sobretudo da rede de relacionamento aqui e no exterior,
principalmente na Suíça e Alemanha. Temos uma fundação suíça que nos
apóia de maneira firme.
O que é mais difícil quando se trabalha com cidadania no Brasil?
Acho que há dependência das pessoas em relação a política e aos
políticos. Há uma dependência mental. No século XIX tem um economista e
homem de negócio fez uma grande viagem aos Estados Unidos e na época ele
já notou que em nenhum lugar do mundo tem uma liberdade de expressão
tão grande e uma dependência mental tão grande. O que poderia dizer é
que precisa tirar das pessoas a dependência mental de outras pessoas ou
de um esquema qualquer.
A dependência mental que o senhor fala é também financeira, de depender
sempre de esferas de governo?
Também porque essa dependência mental está sempre sendo incentivada por
certas vantagens que todo mundo sabe, tijolo para ajudar a terminar a
casa, óculos. O país nos últimos anos progrediu muito. Muitos que
dependiam desse tipo de coisa passaram a não depender tanto, mas na
prática eles querem ainda continuar dependendo. Você deve ter notado
que na linguagem de quem pretende dar soluções fala sobretudo de
emprego, a gente deveria falar de oportunidade de trabalho. No Brasil
quando você conhece a comunidade do Passo da Pátria muitos sobrevivem de
trabalho próprio, de um trabalho informal. O que a gente tem que
oferecer, claro que emprego é importante, é oportunidade de acordo com a
demanda. No Passo da Pátria tem exemplos fantásticos que souberam ver a
demanda mesmo modesta do local para entrar na fabricação, numa pequena
padaria, em fabricar detergente e outras coisas.
Quando o senhor estiver na Suíça virá ao Brasil a passeio ou a trabalho?

Eu não deixei todas as minhas responsabilidades de lado. Porque uma
realização como a ADIC exige continuidade, um pouco mais de
investimento, claro que vou continuar sendo um porta voz na medida do
possível procurar apoio financeiro onde estarei.
O senhor vai trabalhar na Suíça?
Vou trabalhar, mas não como aqui. Com a idade você tem limitações. A
gente vai trabalhar mais como ajudante. Vou continuar me sentindo um
pouco responsável do que ajudamos a construir aqui, isso já constitui umcerto trabalho.
O senhor fala muito da Serra do Mel, qual cidade que o senhor visitou no
Rio grande do Norte e poderia ser uma nova Serra do Mel?
É uma pergunta difícil de responder. Diria que bairros periféricos de
Natal podem se tornar, em vez de depender do centro. Aliás a zona norte
se tornou uma cidade por si. Lá começou a ter fontes de emprego, mas
também oportunidade de trabalho sem emprego formal. Hoje é uma região
onde tem tudo e não precisa forçosamente passar o rio (Potengi) para trabalhar.
Nesses 36 anos de Brasil qual foi seu grande momento?
Foi uma grande aventura. Posso dizer que fiz o percurso do combatente.
Minha esposa trabalhou 15 anos em Mãe Luíza, ela deu muita da sua força,
da sua saúde nisso. Eu também tentei modestamente me dedicar de maneira
inteira ao trabalho e as pessoas a quem prometi uma colaboração.
Quando o senhor chegar na Suíça e perguntarem sobre sua vida no Brasil
vai falar do que?
Conheci o Brasil do tempo da ditadura, mas para mim era um país
comunista, tudo dependia do governo. A pessoa pobre dependia do governo,
o rico estava querendo sempre coisas do governo. Realmente, era nítido,
apesar de ser um regime, havia um círculo com 360 graus, os extremos se
tocavam, apesar de ser ditadura de direita era nitidamente um país
comunista nesse sentido. Hoje melhorou. Vou falar da força da esperança
que move muitas pessoas que não sabem como vão passar o dia de amanhã,
próximo mês, próxima semana. O europeu é muito planejado, ele acumula
dinheiro. Aqui a gente está mais preocupado não em como investir, mesmo
tendo pouco a gente consome, e a gente sempre espera que o amanhã vai ser melhor.